A interessante fórmula proposta por Miguel Cadilhe na sua entrevista ao Jornal de Negócios (ver aqui)para um imposto especial sobre as grandes fortunas mostra como uma parte das elites ligadas ao grande capital, quando pressentem o risco da explosão do descontentamento social dos “de baixo” sujeitos à pressão infame de uma desigualdade cada vez maior, até aguçam o engenho e a arte para prevenir esse risco. Por isso, as palavras de Warren Buffett também por cá encontraram algum eco, embora medíocre, à medida da pequenez e ganância do capital lusitano, de que Américo Amorim é uma expressão maior, o tal que, sendo o mais rico de Portugal, logo declarou que “não é rico”, apenas “trabalhador”.
A proposta de Miguel Cadilhe – arrecadar com o imposto especial sobre as grandes fortunas o equivalente a dois anos de colecta da totalidade do IRS, que poderiam ir directamente para o abate da dívida pública -, e também a proposta que o BE hoje novamente apresenta na Assembleia da República (mais recuada e moderada do que aquela), têm o mérito de colocar a questão no ponto certo: não basta taxar os altos rendimentos em sede de IRS (o que já é feito, com resultados limitados, através de uma taxa de 46,5% sobre os rendimentos mais elevados); é preciso ir ao património mobiliário (acções, obrigações, ouro, etc.) e imobiliário dos muito ricos e aplicar-lhes uma taxação especial. Em nome de uma maior equidade fiscal. O que, se não repõe a justiça na profundamente desigual distribuição da riqueza em Portugal, pelo menos condicionaria a margem de manobra deste Governo ultraliberal para usar de forma desmesurada a pressão dos impostos e do corte de direitos sobre os suspeitos do costume (trabalhadores, reformados, desempregados).
A conveniente recordação por alguma imprensa da defesa pelo Presidente da República de uma taxação especial sobre os altos rendimentos não deve servir para reconhecer de repente algum Robin dos Bosques na Presidência. Significa antes a instrução clara ao Governo, por parte do seu patrono, de que esta onda não deve servir para atingir o património dos poderosos, mas apenas para medidas de “faz de conta”. Ou, dito de outro modo, e lembrando a frase batida do Príncipe de Salina no “Leopardo”, de Lampedusa, a receita de Cavaco e de outros comentadores de serviço ao poder, é que é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma. De facto, Cavaco Silva opõe-se a qualquer tributação especial sobre os grandes patrimónios ou fortunas, mobiliários ou imobiliários, porque sabe muito bem que é aqui que se podem ir buscar recursos para mitigar a carga fiscal e social desproporcionada sobre os rendimentos do trabalho e sobre as pensões. Para este representante da elite política conservadora, o capital é sagrado. E o capital já redistribui voluntariamente os seus restos e migalhas através das obras de caridade que ele tanto tem enaltecido como alternativa a um Estado Social que é preciso desmantelar, não é?
Um argumento já vindo à liça pelos comentadores de serviço, cavaleiros andantes bem pagos sempre prontos a pregar a austeridade para os do costume, é a treta de que um imposto especial sobre as grandes fortunas impulsionaria uma fuga gigante de capitais e a falência dos bancos. É sempre a mesma melodia, seja nas medidas austeritárias da troika e “mais além” (lembrando a orientação ultraliberal do Governo), seja na protecção do grande capital: o que é preciso é acalmar os mercados, as pessoas vêm depois… E o resultado é sempre o mesmo. Os capitais continuam a voar para os paraísos fiscais (vejam-se as estatísticas), o desemprego continua a subir, a recessão a crescer, e as grandes fortunas a crescer (veja-se o insuspeito estudo da Exame, que revela que as 25 maiores fortunas nacionais representam mais de 10% do PIB e aumentaram o seu património quase em 20% num ano e em plena crise).
Os que assim pregam, não explicam porém porque é que os grandes grupos económicos e os bancos portugueses já têm boa parte dos seus activos e dos seus lucros controlados por sociedades sediadas em paraísos fiscais e noutros países europeus, para fugirem ao pagamento de impostos no seu país (como sucede com o “trabalhador” não rico Américo Amorim…). Nem porque é que sistematicamente o PS e os partidos da direita recusaram sempre as propostas à esquerda, do PCP e do BE, para ser controlada e taxada a transferência de capitais para os paraísos fiscais, o que seria possível e viável.
Neste debate, que agora recomeçou, importa ver as cenas do próximo capítulo. Por exemplo, como é que o PS se vai comportar nesta matéria. Se como oposição “construtiva” – leia-se, bem comportado e cúmplice nos compromissos com a troika e com o programa austeritário de recessão e agravamento da pobreza e das desigualdades, embora temperado com alguma proclamada “consciência social” – ou colocando-se claramente do lado da esquerda e dos que combatem por alternativas a esta ordem económica e social injusta.
Cabe aos trabalhadores, às esquerdas, ao movimento social, não permitir que este debate sobre a responsabilização e partilha pelos muito ricos do pagamento da crise seja apenas, como pretendem as elites político-económicas beneficiárias da crise, uma operação cosmética para enganar o pagode e anestesiar o temido protesto social dos humilhados e ofendidos. O que implica propostas e pressão social efectiva para que haja medidas reais e visíveis, no seu valor e nas suas consequências, que provoquem progressos na repartição social da riqueza e dos sacrifícios. E afinal, como questiona o insuspeito de simpatias radicais de esquerda Miguel Cadilhe, “Pagar uma taxa de 3 ou 4% sobre um grande património líquido será muito aflitivo?”
Se tal não suceder, destas “manobras de Agosto” apenas resultaria uma ópera bufa ou um jogo de espelhos montado pelos poderosos para distracção dos incautos e anestesia dos que estão cada vez mais absorvidos pela sobrevivência quotidiana. Do que os poderosos têm medo, muito medo, é que a corda social, de tão esticada pela ganância extrema do capital sem freio e da economia de casino dos mercados, se parta mesmo e que “os brandos costumes” dos portugueses que tanto acarinham se revelem afinal uma ficção.
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