As recentes declarações do Cardeal Patriarca de Lisboa (ver aqui) exprimem o crescente alinhamento do discurso oficial e da prática da Igreja Católica em Portugal pelos interesses do bloco político-económico central dos grandes interesses, que a tem discriminado positivamente, financiado, protegido e beneficiado na governação. Os arrufos pontuais em matérias de valores e de costumes, onde o conservadorismo e fundamentalismo religiosos se têm necessariamente que chocar com a (condicionada e limitada) laicidade do Estado, não conseguem seguer esconder a evidente convergência de interesses.
Não surpreendem então as palavras do Cardeal Patriarca quando declarou não gostar do posicionamento dos “grupos de classes”, entre os quais os sindicatos, e que não gostava “que os grupos estejam a fazer reivindicações grupais, de classe”. Reivindicando para si a duvidosa e improvável legitimidade de intérprete do interesse geral e querendo, em nome disso, convencer os trabalhadores a abdicar da única arma que possuem contra as injustiças – a sua organização e acção colectivas.Como se uma democracia política saudável não envolvesse a gestão e o reconhecimento do conflito entre interesses socialmente organizados.
Não queremos ofender as convicções mais ou menos liberais do Cardeal Policarpo. Todavia o seu ataque aos sindicatos, tão alinhadinho com o discurso de Passos Coelho e depois de já ter publicamente recomendado aos portugueses que comessem e calassem o programa da troika, recorda-nos irresistivelmente a “democracia orgânica” do corporativismo autoritário de má memória em que vivemos durante quase cinquenta anos com a benção do defunto Cardeal Cerejeira. Se não é saudosismo, pelo menos é um discurso legitimador do unanimismo autoritário proclamado pelo poder, assim ungido pelo poder religioso, visando castrar a oposição social e política, sem a qual não há construção de alternativas. E sem debate de alternativas, morre a democracia política.
A Igreja institucional em Portugal tem-se vindo a afastar cada vez mais de uma intervenção socialmente comprometida que obrigue a tomar partido, em favor de uma lógica assistencialista e caritativa que encaixa bem com a relação privilegiada (e mutuamente vantajosa) com um poder político e económico apostado no desmantelamento do Estado Social e na apropriação privada dos bens e serviços públicos. A orientação conservadora e mais distante das temáticas sociais do actual Papa não é certamente alheia ao facto.
A caminhada para o desmantelamento do Estado Social e a sua substituição por um regime assistencialista que traz à (má) memória a Poor Law britânica do século XIX, com a cobertura de um discurso piedoso dirigido aos pobrezinhos, encaixam perfeitamente com o proteccionismo fiscal e com a transferência largamente financiada e subsidiada das responsabilidades sociais do Estado para as IPSS e Misericórdias controladas pela Igreja, e que não são objecto de qualquer fiscalização digna desse nome quanto à gestão e realização das suas funções sociais financiadas pelo Estado.
Ora os favores e os apoios pagam-se. Um poder político tão benevolente, parcial e proteccionista em relação à Igreja-instituição, à Igreja-poder, suscita hoje o carinho dos que comandam a Igreja, e que escolheram ser mais importante a boa relação com os poderosos da política e da economia do que alinhar com os “de baixo”, a imensa maioria cidadã que sobrevive no desemprego, nos baixos salários e pensões, nos altos impostos, no trabalho precário e na incerteza do futuro, na exigência comum da redução das desigualdades e na melhor repartição da riqueza.
A crescente desatenção desta Igreja institucional quanto ao mundo do trabalho, com a desvalorização das suas organizações históricas da Acção Católica Operária, com o desaparecimento do seu activismo e reflexão organizados nesta área, ou no mínimo com o seu confinamento a sectores residuais, são um exemplo expressivo das escolhas feitas pelos principais responsáveis desta instituição. Contrastam com um passado de militantismo operário e sindical de muitos activistas praticantes de um catolicismo social interventivo e transformador. Os quais tiveram um papel marcante na configuração do movimento sindical português, como antes nos combates contra a ditadura do fascismo.
Claro que persistem nos meios católicos activismos e testemunhos de quem rema contra esta maré neoliberal que também atinge, recupera e neutraliza esta Igreja cada vez mais conformada e conformista. Como são as actividades da Comissão Nacional Justiça e Paz. Ou as intervenções dos bispos Januário Torgal ou Manuel Martins. São todavia uma minoria.
A Igreja dos ricos está a submeter a Igreja dos pobres. Assim é submetida em Portugal a Igreja dos pobres e do mundo do trabalho à Igreja-Instituição alinhada, no essencial, com os poderosos. O que ainda mais desequilibra, no imediato, a balança dos poderes para o lado dos que querem aproveitar a maré da crise para uma mais profunda,mais desigual e mais duradoura redistribuição deos recursos em favor dos que mais têm, mas que acham que não são ricos, no país mais desigual da Europa (juntamente com duas pequenas repúblicas bálticas que nos acompanham nesta vergonha).
Porém esta tentação carnal a que sucumbe o Cardeal Policarpo e a Igreja institucional que representa, esquecendo o amargo preço que já pagou no passado pela sua identificação com um regime de má memória a troco de benefícios de curto prazo, tem o reverso da medalha: é a sua perda de raízes e influência nos meios populares e no mundo do trabalho, afinal o que deveria ser a suposta razão primeira da sua existência, se levarmos a sério esse belo poema que é o Sermão da Montanha. E convém não esquecer as palavras sábias do Padre António Vieira que, no seu “Sermão do Bom Ladrão”, proclamava “o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao
inferno.” Aviso que tem evidente ressonância contemporânea no assalto a que está submetida a maioria para proveito da finança especulativa e usurária.
Pelos vistos, vozes dos ricos chegam aos céus. Mas convenhamos que o apoio das “tias de Cascais” e dos poderosos aos seus apelos para que os explorados comam e calem não assegura grande futuro a esta Igreja.
Pelo menos um resultado positivo conseguiu entretanto o Cardeal Policarpo com a sua intervenção: unir as confederações sindicais – a CGTP e a UGT – na comum condenação pública das suas palavras. É obra, quando estas têm conseguido estar ultimamente desavindas em quase tudo, apesar da gravidade da crise social justificar uma reforçada convergência de acção.
Excelente texto. Boa observação,a da união das centrais sindicais, feita pelo discurso “benfeitor” do Cardeal.
Para um estado laico, temos de reconhecer, Portugal ainda se socorre da igreja católica.
Nas escolas públicas, em grande parte delas, subsiste um aparato de proteção à disciplina de educação moral e religiosa, com propaganda permanente e invasiva de todos os espaços….