Esta é uma história e um testemunho que o meu amigo de muitos anos Nelson Bertini escreveu para celebrar os 40 anos do 25 de Abril, partilhou comigo e me autorizou a divulgar. Aqui fica. Fiz com ele e com muitos outros parte desta história. Quando uma geração de jovens trabalhadores do Porto, no final dos anos 60, resolveu ser parte do combate para vencer o sufoco de uma vida, de um regime e de um país fechado e sem horizontes. A casa dos pais do Nelson Bertini foi porto de abrigo e ponto de partida para os nossos voos e aventuras. E também lugar de amizades para a vida. Aqui fica o seu belo texto e a homenagem comovida a tantos companheiros que foram “filhos da madrugada”, alguns dos quais já partiram.
“RUA DA TELHEIRA, 440 – PARANHOS – PORTO
UMA CASA NA REVOLUÇÃO
A casa onde eu morava com os meus pais e irmãos, estava ali na rua da Telheira fazendo esquina com a rua do Tronco, na freguesia de Paranhos. Era uma casa adaptada de uma Subestação dos Serviços de Transportes Colectivos do Porto, que coube ao meu pai, funcionário da empresa desde os nove anos de idade, por bons serviços prestados.
Foi projectada em 1909 para fornecer corrente contínua a veículos de tracção eléctrica a várias “linhas” de eléctricos. Era um exemplar notável da “arquitectura industrial” copiada da Casa Mãe, a Central de Massarelos, ao que sei, com o dedo do arquitecto Marques da Silva.
A minha casa era assim uma casa austera e grave, quase um ser com vida própria, muito por força dos mecanismos e engenhos humanos que albergava e que geravam forças misteriosas e incomensuráveis para a nossa compreensão da época.
De uma escala fora do comum com espaços e dimensões extraordinárias, a começar pelo “hall” onde caberiam folgadamente dois carros eléctricos e a acabar em doze pára-raios no telhado. Um grande quintal onde floriam canteiros geometricamente traçados e acarinhados pelo meu pai e onde os vizinhos e passeantes se embasbacavam e, amiúde, pediam “cinco tostões de flores”.
Foi nessa casa, feita do resfolgar e gritos de máquinas, de mistérios, de ruídos sobrenaturais, de espaços imensos, que vivemos, durante mais de vinte anos. Anos de aprendizagens, de trabalho, de amores e desamores adolescentes e mais tardios, de cultura, de sentimentos de liberdade. E foi, também, um dos lugares de encontro e de acção política de uma geração de jovens que, nos anos idos de 1968 a 1974, perante os dramas da história, decidiram não ficar indiferentes e agir.
Foi nesta casa, da “Telheira”, que passavam de mão-em-mão os livros proibidos, como A Mãe de Gorki, o Manual de Economia Política de Nikitin, O Ciclo do Caranguejo de Josué de Castro, o Crimes de Guerra no Vietname Bertrand Russel, o Princípios Elementares de Filosofia Política de Georges Politzer, e muitos outros. Éramos quase todos trabalhadores ou trabalhadores estudantes, eram leituras difíceis, mas a vontade de saber e de aprender era grande. Não nos contentávamos com a espuma das coisas, com o preto e branco das explicações mais simples.
Foi nesta casa, da “Telheira”, que se realizaram as primeiras reuniões da célula do Partido (o PCP) para a organização do Movimento da Juventude Trabalhadora (MJT): eu e o Henrique, dirigida pela funcionária clandestina Ivone Dias Lourenço. O MJT foi um movimento muito importante no despertar e na mobilização para a luta política, principalmente contra a guerra colonial, de jovens operários e empregados urbanos, com origem no Porto e mais tarde implantado em todo o país.
Era nesta casa da “Telheira” que nos juntávamos a ouvir, no velho “Schaub-Lorenz” da minha avó, as ondas curtas que nos traziam as vozes da “Rádio Portugal Livre” e de “A Voz da Liberdade”, num sempre difícil exercício de decifração entre as mensagens e as interferências radioelétricas com que o regime as procurava vencer.
Foi nesta casa da “Telheira”, que se fizeram várias sessões de projecção do filme “O Couraçado Potemkin” de Sergei Eisenstein, seguidas de debate. O filme chegou-nos de França em bobinas de 8mm e o projector foi emprestado por mão amiga. A assistência, naturalmente selecionada, ainda assim era numerosa e atenta, mau grado os sobressaltos técnicos com saltos de imagem, do mecanismo ruidoso, da delicada operação de substituir bobinas. A arte do cinema ao serviço dos ideais nas mãos de projecionistas amadores.
Foi na “Telheira”, que eu, com a colaboração do Caetano, “fabricamos” um duplicador manual para “stencil” onde imprimimos milhares de panfletos e boletins: de denúncia do fascismo, da Guerra Colonial, de apelo a greves por melhores condições de trabalho e contra a carestia da vida (1970), de solidariedade para com as greves dos pescadores de Matosinhos e das Caxinas, de evocação do 24 de Março como “Dia Mundial da Juventude”, da solidariedade para com o Vietname; a boletins como o dos estudantes da Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis e o boletim do MJT do Porto o “Tempo Novo”.
Foi no chão do hall da casa da “Telheira”, que pintamos as faixas de pano com as palavras de ordem que quisemos levar para o célebre comício do 31 de Janeiro no Cinema Nun’Álvares. E foi nesse chão de cimento que, sem nos darmos conta, ficaram escritas, a tinta de esmalte vivo, as palavras de ordem que furaram a trama do tecido e nos afligiram o resto da noite em esfregas difíceis e inglórias.
Foi ainda, na “Telheira”, que, com as mãos artísticas do Hermínio, trabalhamos o linóleo e fizemos um cartaz comemorativo do centenário do nascimento de “Lenine” (1970), e duplicamos uma brochura com um texto seu. Da mesma forma, talhamos o cartaz comemorativo do cinquentenário do PCP (1971).
A PIDE desesperava-se por encontrar o “aparelho técnico”. Quando prendia alguém, as buscas e os interrogatórios incidiam sobre o “aparelho técnico”. Onde está? Quem tem? Quem são os responsáveis. Na verdade, a diversidade de formas e de locais onde eram dactilografados ou gravados os materiais de informação e propaganda e as técnicas utilizadas, permitiam dizer que cada um de nós era o “aparelho técnico”. Mesmo depois de presos, os panfletos e cartazes continuaram a aparecer um pouco por todo o lado.
Foi dessa casa, que saíram duas caixas com petardo para a distribuição dos panfletos a convocar a manifestação de 15 de Abril (1971) contra a carestia: uma para a escola do Infante D. Henrique que o meu irmão Cirilo levou, outra para a EFACEC que a mim me coube e me trouxe sobressaltos inesperados. Não imaginei que, na hora de colocar o mecanismo com os panfletos, a saída da fábrica, estivesse tanta gente na portaria à espera dos que saíam. Assim, vi-me no meio de uma pequena multidão, a activar o dispositivo, pregar-lhes um involuntário mas valente susto, enquanto me punha a milhas montado na motorizada.
Nesta manifestação, eu e a minha companheira da época, a Luísa, fomos presos. Por isso, a casa da “Telheira”, onde morávamos, teve “direito” a um guarda-portão da polícia política (PIDE), perfeitamente às claras, as vinte e quatro horas do dia, e durante mais de um mês.
Mas, para mim, e como momento mais marcante, foi quando num tranquilo início de serão de Domingo (Fevereiro de 1972), me despedi dos meus pais com um “até amanhã”, partindo assim para a clandestinidade, da qual não conhecia nem os caminhos nem o fim.
Embarquei em Campanhã, no comboio com destino a Lisboa chamado “correio” por parar em todas as estações e apeadeiros. Saía por volta de meia-noite e chegava a Lisboa depois das sete. O problema é que esse comboio era um transporte de militares mobilizados para as várias frentes da guerra colonial. Em cada paragem, o embarque era pontuado por gritos aflitivos dos familiares dos soldados, principalmente os gritos desesperados das mães, que ainda hoje retenho nos ouvidos. E foi assim em todas as estações e apeadeiros. Uma viagem longa e aflitiva, para mim que ia para outra guerra, com a desvantagem de estar completamente só e por minha conta. Nas carruagens, os soldados, bebiam e cantavam, como só os soldados são capazes de fazer. Os gritos de uns não eram os gritos de outros, que já ficaram para trás. Eles arrancavam os laços de afecto da família e as raízes da terra e construíam a solidariedade da guerra, para vencer o medo e sobreviver. Como acontece com todos os soldados, em todas as guerras.
Sempre associei esta memória ao livro de Zola, “A Besta Humana”, quando relata a viagem de um comboio desgovernado, cheio de soldados que cantam, a caminho do desastre e da morte.
Em Lisboa, eu teria de cortar o cabelo, tirar fotografias tipo passe, comprar uns óculos de sol, e embarcar para o Barreiro, como se fosse o princípio de uma nova vida.
E a casa da “Telheira” lá ficou a albergar temores de uns pais que se agarravam à informação da carta que receberam em meu nome que me punha em Moscovo, carta que eu não escrevi e Rússia onde nunca estive…
Veio, enfim, o 25 de Abril.
A casa da “Telheira” não durou muito mais. Como acontece a quem faz revoluções, os novos poderes encarregam-se de os liquidar ou afastar exigindo que se portem bem e, principalmente, que não falem.
Assim, a Casa foi demolida. Também já não faria sentido, nem era rentável, ter todo aquele espaço desaproveitado, com um quintal que já não brilhava de flores e de frutos, que umas mãos fizeram e outras novas se queriam. Deu lugar a um condomínio.
Quem lá vive, ganhou conforto e qualidade, que a Revolução também foi isso. Quem lá vive, certamente não conhece a modesta história daquele sítio e até talvez haja quem tenha raiva a quem sabe e a quem a fez. Mas é assim mesmo a vida.
O meu propósito de hoje, quarenta anos após o 25 de Abril, é apenas o de prestar uma homenagem a esta Casa, uma das muitas que contribuíram serena e silenciosamente para a Revolução.
Ah, e já agora, aos que a habitavam, que aguentaram a defesa do bastião e a todos dos seus ilustres convidados, camaradas de uma geração que fez o que entendeu ser o seu dever, sem obedecer a ordens de ninguém, e deu o seu melhor, sempre desinteressadamente, com coragem e sem traições, coerentes até hoje, apesar das tramas políticas e das curvas do tempo:
Porto, 25 de Abril de 2014″
Nelson Bertini