Feeds:
Artigos
Comentários

Vinham em barda. Corriam como búfalos na savana. Cabos e microfones. Câmaras de televisão e flashes de fotografia. Saltos altos, mini-saias. Pastas e pastinhas. Assessores para dar e vender. Seguranças de auricular no ouvido. Altos, atentos. Cada ministro e secretário de estado fazia-se acompanhar pela sua tropa. Era um enxame de abelhas à volta de um homem. Encontrões para cá, encontrões para lá. Pisadelas e amassos. “Céus, parece uma acção de campanha!”, desabafavam alguns.

O homem dos holofotes parava nos pontos estrategicamente indicados na lista pré-definida. A senhora baixinha da BTL, com uma pasta na mão, trazia um mapa fotocopiado com a planta da feira. Os stands estavam assinalados com marcador grosso cor-de-laranja. Era onde o homem dos holofotes teria de parar, nos stands “recomendados”. As abordagens friendly resultam sempre muito naturais, acreditam eles.

Os jornalistas, triste figura, atrás da “boca” de circunstância. Que mensagem informativa se passa com este tipo de trabalho? Enfim. Vinham em barda, sim. Corriam como búfalos na savana, sim. Agora uma pergunta de circunstância: “então não prova os doces, senhor Primeiro-Ministro?” E a resposta de circunstância. Vazia. E seguia a banda. E agora outra pergunta de circunstância, mas – importante – para o directo da tv. Ajeita o cabelo, sabe que está na tela. Estridente a perguntinha: “e tem motivos para brindar? Vai brindar ao quê, senhor Primeiro-Ministro?” Gargalhadinhas dos assessores e daquele amontoado de gente. E a resposta vazia. E mais uns empurrões. E segue a banda.

O gabinete do PM tinha avisado que ele não iria falar com a imprensa à margem do tema do dia, o Turismo. Falaria no palanque sobre isso e mais nada. Era a informação oficial do gabinete. Mas das duas uma: ou o PM não sabia disto, ou não cumpriu o estipulado.

Conhecendo as falhas na comunicação do gabinete do chefe do Governo de Portugal, os jornalistas, ou pelo menos os que por ali andavam de microfone estendido debaixo do queixo do homem como que à espera da esmola da boca vazia, insistiam.

E não é que entre os queijos de São Jorge, as cortiças do Alentejo e os tamancos do Minho o homem falou sobre o Plano Grego apresentado em Bruxelas? E não é que com os dedos peganhentos da Ginginha e à frente do boneco cabeçudo do Galo de Barcelos, o homem falou sobre a Grécia? Não é inacreditável? Não há sentido de Estado na savana.

Não sei o que é pior. Se a barda de jornalistas a prestarem-se a esta figura ou se o homem dos holofotes a prestar-se àquilo. Venha o Diabo e escolha.

Siga a banda. Em barda, como eles gostam. “Para parecermos muitos”.

buf

A Mimi

Vi-a no Verão passado. Estava queimadinha da praia, vestido leve e floral, sandálias baixas, pés tratados, cheia de colares e pulseiras coloridas. Tinha um ar saudável e feliz.

Cruzámo-nos na rua e rasgou um sorriso gigante, muito branco, olhos muito brilhantes e um sonoro “olá, há tanto tempo!”

A Mimi era mais velha que eu uns anos. Nunca estudámos juntas, ela era da Comercial, eu do Liceu. Na verdade nem sei bem como ou quando nos conhecemos. Teremos estado juntas em algum jantar de amigos comuns, em alguma festa.

Nunca conversámos sobre a nossa vida, falávamos sempre de passagem, dizíamos sempre um “olá” sorridente, seguido de um “tudo bem?”. A Mimi tinha sempre um mimo: “estás tão linda” ou “cada vez mais bonita” ou “vi-te na televisão!”. A Mimi estava sempre sorridente e era sempre simpática.

Na última vez que nos cruzámos acenou e soltou palavras doces no meio do sorriso rasgado:“um dia destes temos que tomar um café!”

Não tomámos. Nem vamos tomar.

A Mimi foi assassinada ontem pelo homem com quem vivia. O sorriso feliz da Mimi escondia cicatrizes, agressões, maus tratos e violência. A violência doméstica é crime. A Mimi procurou ajuda, procurou fugir da morte. Já tinha feito queixas. Já tinha procurado ajuda. Voltou para casa. Voltava sempre para casa, sabendo o que a esperava todos os dias. Mas na rua sorria para os outros. Tal como sorria para mim. E tinha sempre um mimo para oferecer. E tinha sempre um sorriso bonito.

A Mimi ligou à Polícia horas antes de morrer. Queixou-se da agressão. O homem com quem vivia ia matá-la, como ameaçava todos os dias. A Polícia não apareceu logo. O caso estava sinalizado. As instituições catalogaram o caso da Mimi como sendo de “baixo risco”. A Mimi foi morta. Assassinada com uma faca de cozinha na casa onde sabia que ia ser morta um dia. Na casa onde sempre voltava ao fim do dia depois de espalhar sorrisos e mimos aos que a conheciam. A Mimi voltava a casa, o seu inferno diário, onde se ia deitar com o homem que a ia matar.

Ser Mulher não é isto. Ser Homem também não.

mulherok

Tenho a cabeça num nó. Não consigo dormir. Excesso de informação. Trabalhar na área política e na justiça tem destas coisas. Há informação que me provoca asco. It’s politics, stupid!

48 horas de conversas meio secretas, outras nem tanto, de telefonemas esquisitos e mensagens estranhas, de documentos falsos ou verdadeiros, de manipulações e jogo perigoso, de sedutores labirintos e rebuscadas teorias da conspiração.

Não sei se o mundo gira ao contrário ou se estão à solta os loucos conspiradores de Lisboa. Não sei se o bas-fond decidiu atacar tudo e todos ao mesmo tempo. Talvez sejam apenas os meus neurónios a pedirem um descanso em off-shore.

tough

Governar_siteO meu contributo para o debate sobre protecção social na Conferência “Governar à Esquerda” do Congresso Democrático das Alternativas (CDA)

Um sistema de segurança social público alicerçado nos princípios de solidariedade, universalidade e estreita relação com o trabalho, no reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais e na redução da desigualdade e da pobreza, na protecção do princípio da confiança, na combinação de um regime previdencial fundado na contribuição sobre os rendimentos do trabalho com um regime de protecção social de cidadania, não é compatível com a política de austeridade ultraliberal do actual Governo e da União Europeia. Implica a assunção de escolhas estratégicas quanto à sociedade que queremos construir e em que queremos viver. Escolhas políticas. Com consequências na definição das prioridades, das políticas públicas e da distribuição de recursos escassos.

Ao contrário, as teses que já circulam avançadas pelos “intelectuais orgânicos” da área do Governo apontam para a constituição de um novo sistema de segurança social que acabe com o princípio da protecção da confiança e corte direitos dos actuais reformados; elimine o regime de repartição com benefícios definidos, em favor de lógicas de individualização e capitalização; aplique o regime de plafonamento no sistema previdencial; reduza o papel do Estado no sistema de protecção social em favor de um assistencialismo a cargo de instituições privadas com financiamento público. Tudo em nome da crise, das orientações europeias e da insustentabilidade financeira do actual modelo. E sem sequer avançarem a prova da sua sustentabilidade e as contas que as fundamentam.

O futuro da segurança social e as escolhas a fazer deve constituir um elemento central no debate programático das alternativas políticas à actual governação. Com o aproximar das eleições legislativas, os cidadãos e forças políticas, sociais e sindicais que rejeitam a visão austeritária vigente têm neste período uma oportunidade, a não perder, para somar à necessária resistência à iniquidade social desta governação a discussão pública das propostas que assegurem a sustentabilidade do nosso sistema de protecção social, na perspectiva do seu desenvolvimento e aperfeiçoamento e fazendo a crítica consistente às teses da direita. Reconhecendo as pensões e o conjunto das prestações sociais como factor de coesão social e de dinamismo económico e não como fardo insuportável a alijar.

Isso exige ir ao debate sobre os constrangimentos financeiros, económicos, sociais e demográficos e sobre as soluções para assegurar a estabilidade do sistema, reduzindo a incerteza e protegendo a confiança. Analisar o financiamento do regime previdencial, mantendo como base a tributação autónoma dos rendimentos do trabalho, mas estudando medidas que alarguem a base contributiva e programas mais eficazes de combate à fraude e evasão. Encontrar soluções que respondam à desconfiança das novas gerações de trabalho precário e “independente” para com a segurança social. Reforçar os mecanismos redistributivos na gestão das prestações sociais e dignificar a utilização da condição de recursos como instrumento de satisfação responsável de direitos sociais legítimos e não como garrote burocrático e repressivo para cortar despesa social. Desenvolver o processo de convergência e unificação dos sistemas públicos de pensões, com protecção dos direitos constituídos e do regime de repartição com benefícios definidos. Concretizar mais eficazmente o princípio constitucional, hoje desvalorizado, da participação das organizações de trabalhadores e demais beneficiários na organização e direcção do sistema.

Reformar não é fazer cortes. É melhorar a sustentabilidade do sistema na sua tripla dimensão económica, social e política e sempre assegurando a sua conformidade com o quadro constitucional. Construindo nesse processo os acordos políticos e sociais alargados que garantam a estabilidade e a confiança num sistema essencial à qualidade da democracia e à coesão social. Com uma condição prévia: dados e contas transparentes, públicos, acessíveis, fiáveis e auditados. Esta condição também está por cumprir.

Vítor SantosMorreu o Vítor Santos. Partiu prematuramente, aos 70 anos de idade, após enfrentar com exemplar coragem uma doença dolorosa e prolongada. Activista social e político generoso e empenhado, sempre insubmisso e indignado contra as injustiças, sempre do lado dos “de baixo”. Um Amigo insubstituível.

No seu funeral, e cumprindo uma das suas últimas vontades, fiz enquanto seu amigo uma intervenção que aqui reproduzo:

O Vítor Santos, amigo e camarada com quem tive o privilégio de partilhar alegrias e tristezas, interrogações, combates e projectos de incerto destino, fez quatro pedidos ainda em vida, para serem cumpridos na sua partida: uma bandeira vermelha; a audição colectiva da canção “Gracias a la Vida”; que os amigos celebrassem a sua memória com o pão e o vinho da fraternidade e do convívio; e que eu dissesse algumas palavras.

Aqui estamos para em conjunto cumprirmos a sua vontade e celebrarmos a sua vida e a sua memória, inconformados com a sua partida prematura aos 70 anos, quando a sua experiência, energias e saberes tanto falta nos faziam ainda na nossa caminhada comum. Corajoso e determinado tanto na aventura da vida como no modo como enfrentou a doença e o fim, tendo sempre ao seu lado uma extraordinária e igualmente corajosa companheira, a Ana.

Não terei a pretensão de resumir nalgumas palavras, aqui e agora, uma vida inteira, rica e variada, como foi a do Vítor. Procurarei tão só partilhar e lembrar uma fracção significativa daquilo que familiares e amigos dele conheceram e valorizaram.

O Vítor Santos foi um dos seres humanos mais generosos, solidários, autênticos e leais que conheci. Com ele tive o privilégio de aprender muito e de partilhar uma verdadeira e duradoura amizade. Viveu intensamente e intensamente se empenhou nas causas que abraçou. É um daqueles que, aos meus filhos como aos meus netos, sempre lembrarei como uma das minhas referências mais fortes sobre o melhor que somos enquanto humanos.

Não foi certamente uma figura mediática. Nem constará provavelmente dos livros de história. Mas faz parte daquele exército dos que dão tudo de si em prol da libertação dos homens sem nada exigirem em troca. Sem os quais a marcha dos humilhados e ofendidos pela sua dignidade não poderia progredir e ganhar sentido.

É a memória de pessoas assim, como o Vítor, que precisamos de incorporar na nossa história colectiva e na nossa caminhada, para que nos ajudem a iluminar a estrada e o sentido e nos fortaleçam a crença e a esperança num mundo melhor e numa sociedade mais decente.

Falar do Vítor é lembrar o trabalhador qualificado (era desenhador projectista), responsável, qualificado e exigente que sempre foi, o camarada de trabalho leal e solidário, dos tempos da Sorefame ao tempo em que por inteiro se entregou como revolucionário profissional – conceito hoje estranho para muitos, mas que fez todo o sentido no seu caso – ao PCP, até aos últimos anos de vida, em que encontrou no SPGL – Sindicato do s Professores da Grande Lisboa, uma outra casa e um outro modo de continuar a servir os trabalhadores e as suas causas.

Falar do nosso amigo Vítor é lembrar uma vida de intensas, múltiplas e variadas experiências. Homem de cultura e conhecimento fora do comum, não de saber académico, mas de uma sabedoria construída na permanente vontade de ler, de praticar, de descobrir, de questionar, de interrogar e procurar respostas e a compreensão do mundo e das pessoas. Por isso mesmo os seus saberes e centros de interesse foram diversos, dos trabalhos e artes manuais ao fascínio pelas artes plásticas, pelas ciências e pelas técnicas. Sempre, sempre procurando partilhar saberes e aprendizagens e procurando encontrar soluções para problemas. E sempre partilhando histórias e experiências de vida com amigos e companheiros de trabalho, como grande e genuíno contador de histórias que foi.

O Vítor fez uma dura e exigente aprendizagem do que é a aventura da vida e do crescimento. Nas guerras coloniais, na fábrica, na sociedade, nas privações materiais. Conheceu, sofreu e indignou-se coma exploração, a dominação e a humilhação dos homens por outros homens. E foi assim que formou a personalidade generosa, solidária, leal e combativa que lhe reconhecemos.

Foi activista social e político, sempre empenhado, sempre insubmisso contra as injustiças, os males e as opressões no mundo. Sempre do lado dos “de baixo”. Lutador antifascista. Sindicalista no seu sector profissional, os técnicos de desenho. Destacado militante comunista e um dos mais qualificados construtores e dirigentes históricos da Festa do Avante! Sempre cidadão de convicções e de valores. Todavia, e quando foi preciso, a sua vontade de interrogar e de compreender as mudanças permitiu-lhe também não ficar prisioneiro de certezas cristalizadas e de becos sem saída. Por isso, permanecendo comunista e nunca traindo as convicções e os ideais que escolheu, soube igualmente fazer escolhas pessoais difíceis na sua vida e na sua intervenção política. Não hesitando em procurar rumos novos para a libertação dos trabalhadores a que dedicou o melhor da sua vida. Sempre sem azedumes nem rancores.

Nos últimos anos, empenhou-se fortemente no desenvolvimento do activismo social e no trabalho de construção de unidades e convergências. Foi membro e dirigente da ATTAC. Esteve na fundação do Movimento Não Apaguem a Memória. Foi um dos promotores da Comissão Nacional de Apoio ao Tribunal Russell sobre a Palestina. Foi activo apoiante dos esforços de diálogo e convergência à esquerda do Congresso Democrático das Alternativas. Foi um dos organizadores desde a primeira hora do espaço de encontro e convívio plural que são os jantares anuais “Em Abril, Esperanças Mil”.

Não resisto a lembrar aqui uma pequena história que define o seu modo de estar e de intervir. Quando da guerra de agressão contra o Iraque, o Vítor, com a Ana, decidiram conceber e produzir em sua casa muitas faixas criativas de protesto que foram colocar nos viadutos, por toda a IC 19, entre Lisboa e Sintra. Era assim o Vítor Santos. Não esperou por decisões ou orientações. Tomou a iniciativa e agiu como cidadão indignado e solidário.

Agora que partiu um dos mais generosos e solidários seres humanos que conheci, apenas posso desejar que de cada um de nós também possa um dia ser dito, na hora da nossa partida, aquilo que com segurança podemos afirmar do Vítor Santos: no deve e no haver do seu contributo para a humanidade e para o mundo, no balanço dos defeitos e qualidades, o saldo é imensamente positivo. E como valeu a pena a sua vida cheia!

O Vítor não teve tempo de fazer, como desejava, uma última caçada. Mas o caçador de sonhos que foi, esse, permanecerá nas nossas memórias a inspirar as nossas utopias.

São decerto bem aplicadas ao Vítor Santos as palavras de um destacado oposicionista à ditadura do Estado Novo, Mário Sacramento, que terminou a sua carta-testamento assim: Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!

Tenho de fazer uma confissão. Sou uma dependente da informação. Não sei se isto se cura, já tentei várias terapias mas sinto que de ano para ano os sintomas se vão agravando. Talvez precise de ajuda especializada… 

Ora vejamos. Se houvesse uma especialidade médica, um Senhor Doutor, que curasse dependentes de notícias e de informação, começaria por revelar-lhe alguns sintomas. 

– Olhe, Sôtor, eu não sei se isto vai ser fácil, mas há indícios que eu penso que o Sôtor tem mesmo de saber. Eu, pelo menos, acho que isto não é normal. 

– Então diga lá. O que é que sente? 

– Olhe, um dia destes, em plena auto-estrada do Sul, parei à meia-noite e meia numa estação de serviço para tomar um café, e tive de pedir ao funcionário para aumentar o volume do televisor porque estavam a analisar uma decisão do Tribunal Constitucional. Resta dizer, Sôtor, que eu estava em pleno período de férias. Bem sei que, tendo-me apercebido que se tratava de um debate na Sic Notícias, devia ter virado a cara e evitado continuar exposta à informação. Mas não consegui… 

– Humm… Isso é grave. E que mais sintomas manifesta?

– Ontem uns amigos contavam uma anedota enquanto almoçávamos. Acredita que assim que falaram em “Sócrates”, perguntei se se referiam ao antigo Primeiro-Ministro? Devo estar doente. Olharam para mim como se eu fosse um extraterrestre. Claro que não, estavam a falar de filósofos. 

– Humm… Pois, isso também não é bom. Está a afunilar referências… 

– Sinto-me mal, sabe? Quando estou com pessoas que não são jornalistas ou estão fora do meio político, não posso dizer as mesmas piadas, compreende? Não posso fazer trocadilhos sobre o Seguro e o Costa. Não posso dizer simplesmente a palavra “Passos”, perguntam logo: “qual Passos? O do Café?” Não posso falar simplesmente de Belém sem que pensem que estou a falar dos Pastéis ou do Belenenses. Compreende? Isto é uma enorme angústia… 

– Mas vê e lê tudo?!  

– Quase tudo, sim. Ouço noticiários, leio jornais. Até imprensa internacional, imagine…

– E que mais? Perdeu o apetite? 

– Bem, isso não Sôtor. Também não exagere. Para comer e beber ainda estou bem. 

– Mas consegue alimentar-se sem estar acompanhada por notícias? 

[Silêncio]

– Hummm… Pois… O seu caso é sério… 

– O que devo fazer, Sôtor? 

– Bem, vou prescrever-lhe aqui uns comprimidos anti-notícias. Tem de tomar todos os dias pelo menos uma vez por dia até ao fim das suas férias. Todos os dias sem falhar.

– Muito bem. Obrigada Sôtor. Vou fazer isso, sim. E acha que devo tomá-los antes ou depois de ver o Telejornal? Ou é preferível logo de manhã, ao pequeno-almoço, durante a leitura dos jornais?

 

psic1

Esta é uma história e um testemunho que o meu amigo de muitos anos Nelson Bertini escreveu para celebrar os 40 anos do 25 de Abril, partilhou comigo e me autorizou a divulgar. Aqui fica. Fiz com ele e com muitos outros parte desta história. Quando uma geração de jovens trabalhadores do Porto, no final dos anos 60, resolveu ser parte do combate para vencer o sufoco de uma vida, de um regime e de um país fechado e sem horizontes. A casa dos pais do Nelson Bertini foi porto de abrigo e ponto de partida para os nossos voos e aventuras. E também lugar de amizades para a vida. Aqui fica o seu belo texto e a homenagem comovida a tantos companheiros que foram “filhos da madrugada”, alguns dos quais já partiram.

“RUA DA TELHEIRA, 440 – PARANHOS – PORTO

UMA CASA NA REVOLUÇÃO

 A casa onde eu morava com os meus pais e irmãos, estava ali na rua da Telheira fazendo esquina com a rua do Tronco, na freguesia de Paranhos. Era uma casa adaptada de uma Subestação dos Serviços de Transportes Colectivos do Porto, que coube ao meu pai, funcionário da empresa desde os nove anos de idade, por bons serviços prestados.

Foi projectada em 1909 para fornecer corrente contínua a veículos de tracção eléctrica a várias “linhas” de eléctricos. Era um exemplar notável da “arquitectura industrial” copiada da Casa Mãe, a Central de Massarelos, ao que sei, com o dedo do arquitecto Marques da Silva.

A minha casa era assim uma casa austera e grave, quase um ser com vida própria, muito por força dos mecanismos e engenhos humanos que albergava e que geravam forças misteriosas e incomensuráveis para a nossa compreensão da época.

De uma escala fora do comum com espaços e dimensões extraordinárias, a começar pelo “hall” onde caberiam folgadamente dois carros eléctricos e a acabar em doze pára-raios no telhado. Um grande quintal onde floriam canteiros geometricamente traçados e acarinhados pelo meu pai e onde os vizinhos e passeantes se embasbacavam e, amiúde, pediam “cinco tostões de flores”.

Foi nessa casa, feita do resfolgar e gritos de máquinas, de mistérios, de ruídos sobrenaturais, de espaços imensos, que vivemos, durante mais de vinte anos. Anos de aprendizagens, de trabalho, de amores e desamores adolescentes e mais tardios, de cultura, de sentimentos de liberdade. E foi, também, um dos lugares de encontro e de acção política de uma geração de jovens que, nos anos idos de 1968 a 1974, perante os dramas da história, decidiram não ficar indiferentes e agir.

Foi nesta casa, da “Telheira”, que passavam de mão-em-mão os livros proibidos, como A Mãe de Gorki, o Manual de Economia Política de Nikitin, O Ciclo do Caranguejo de Josué de Castro, o Crimes de Guerra no Vietname Bertrand Russel, o Princípios Elementares de Filosofia Política de Georges Politzer, e muitos outros. Éramos quase todos trabalhadores ou trabalhadores estudantes, eram leituras difíceis, mas a vontade de saber e de aprender era grande. Não nos contentávamos com a espuma das coisas, com o preto e branco das explicações mais simples.

Foi nesta casa, da “Telheira”, que se realizaram as primeiras reuniões da célula do Partido (o PCP) para a organização do Movimento da Juventude Trabalhadora (MJT): eu e o Henrique, dirigida pela funcionária clandestina Ivone Dias Lourenço. O MJT foi um movimento muito importante no despertar e na mobilização para a luta política, principalmente contra a guerra colonial, de jovens operários e empregados urbanos, com origem no Porto e mais tarde implantado em todo o país.

Era nesta casa da “Telheira” que nos juntávamos a ouvir, no velho “Schaub-Lorenz” da minha avó, as ondas curtas que nos traziam as vozes da “Rádio Portugal Livre” e de “A Voz da Liberdade”, num sempre difícil exercício de decifração entre as mensagens e as interferências radioelétricas com que o regime as procurava vencer.

Foi nesta casa da “Telheira”, que se fizeram várias sessões de projecção do filme “O Couraçado Potemkin” de Sergei Eisenstein, seguidas de debate. O filme chegou-nos de França em bobinas de 8mm e o projector foi emprestado por mão amiga. A assistência, naturalmente selecionada, ainda assim era numerosa e atenta, mau grado os sobressaltos técnicos com saltos de imagem, do mecanismo ruidoso, da delicada operação de substituir bobinas. A arte do cinema ao serviço dos ideais nas mãos de projecionistas amadores.

Foi na “Telheira”, que eu, com a colaboração do Caetano, “fabricamos” um duplicador manual para “stencil” onde imprimimos milhares de panfletos e boletins: de denúncia do fascismo, da Guerra Colonial, de apelo a greves por melhores condições de trabalho e contra a carestia da vida (1970), de solidariedade para com as greves dos pescadores de Matosinhos e das Caxinas, de evocação do 24 de Março como “Dia Mundial da Juventude”, da solidariedade para com o Vietname; a boletins como o dos estudantes da Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis e o boletim do MJT do Porto o “Tempo Novo”.

Foi no chão do hall da casa da “Telheira”, que pintamos as faixas de pano com as palavras de ordem que quisemos levar para o célebre comício do 31 de Janeiro no Cinema Nun’Álvares. E foi nesse chão de cimento que, sem nos darmos conta, ficaram escritas, a tinta de esmalte vivo, as palavras de ordem que furaram a trama do tecido e nos afligiram o resto da noite em esfregas difíceis e inglórias.

Foi ainda, na “Telheira”, que, com as mãos artísticas do Hermínio, trabalhamos o linóleo e fizemos um cartaz comemorativo do centenário do nascimento de “Lenine” (1970), e duplicamos uma brochura com um texto seu. Da mesma forma, talhamos o cartaz comemorativo do cinquentenário do PCP (1971).

A PIDE desesperava-se por encontrar o “aparelho técnico”. Quando prendia alguém, as buscas e os interrogatórios incidiam sobre o “aparelho técnico”. Onde está? Quem tem? Quem são os responsáveis. Na verdade, a diversidade de formas e de locais onde eram dactilografados ou gravados os materiais de informação e propaganda e as técnicas utilizadas, permitiam dizer que cada um de nós era o “aparelho técnico”. Mesmo depois de presos, os panfletos e cartazes continuaram a aparecer um pouco por todo o lado.

Foi dessa casa, que saíram duas caixas com petardo para a distribuição dos panfletos a convocar a manifestação de 15 de Abril (1971) contra a carestia: uma para a escola do Infante D. Henrique que o meu irmão Cirilo levou, outra para a EFACEC que a mim me coube e me trouxe sobressaltos inesperados. Não imaginei que, na hora de colocar o mecanismo com os panfletos, a saída da fábrica, estivesse tanta gente na portaria à espera dos que saíam. Assim, vi-me no meio de uma pequena multidão, a activar o dispositivo, pregar-lhes um involuntário mas valente susto, enquanto me punha a milhas montado na motorizada.

Nesta manifestação, eu e a minha companheira da época, a Luísa, fomos presos. Por isso, a casa da “Telheira”, onde morávamos, teve “direito” a um guarda-portão da polícia política (PIDE), perfeitamente às claras, as vinte e quatro horas do dia, e durante mais de um mês.

Mas, para mim, e como momento mais marcante, foi quando num tranquilo início de serão de Domingo (Fevereiro de 1972), me despedi dos meus pais com um “até amanhã”, partindo assim para a clandestinidade, da qual não conhecia nem os caminhos nem o fim.

Embarquei em Campanhã, no comboio com destino a Lisboa chamado “correio” por parar em todas as estações e apeadeiros. Saía por volta de meia-noite e chegava a Lisboa depois das sete. O problema é que esse comboio era um transporte de militares mobilizados para as várias frentes da guerra colonial. Em cada paragem, o embarque era pontuado por gritos aflitivos dos familiares dos soldados, principalmente os gritos desesperados das mães, que ainda hoje retenho nos ouvidos. E foi assim em todas as estações e apeadeiros. Uma viagem longa e aflitiva, para mim que ia para outra guerra, com a desvantagem de estar completamente só e por minha conta. Nas carruagens, os soldados, bebiam e cantavam, como só os soldados são capazes de fazer. Os gritos de uns não eram os gritos de outros, que já ficaram para trás. Eles arrancavam os laços de afecto da família e as raízes da terra e construíam a solidariedade da guerra, para vencer o medo e sobreviver. Como acontece com todos os soldados, em todas as guerras.

Sempre associei esta memória ao livro de Zola, “A Besta Humana”, quando relata a viagem de um comboio desgovernado, cheio de soldados que cantam, a caminho do desastre e da morte.

Em Lisboa, eu teria de cortar o cabelo, tirar fotografias tipo passe, comprar uns óculos de sol, e embarcar para o Barreiro, como se fosse o princípio de uma nova vida.

E a casa da “Telheira” lá ficou a albergar temores de uns pais que se agarravam à informação da carta que receberam em meu nome que me punha em Moscovo, carta que eu não escrevi e Rússia onde nunca estive…

Veio, enfim, o 25 de Abril.

A casa da “Telheira” não durou muito mais. Como acontece a quem faz revoluções, os novos poderes encarregam-se de os liquidar ou afastar exigindo que se portem bem e, principalmente, que não falem.

Assim, a Casa foi demolida. Também já não faria sentido, nem era rentável, ter todo aquele espaço desaproveitado, com um quintal que já não brilhava de flores e de frutos, que umas mãos fizeram e outras novas se queriam. Deu lugar a um condomínio.

Quem lá vive, ganhou conforto e qualidade, que a Revolução também foi isso. Quem lá vive, certamente não conhece a modesta história daquele sítio e até talvez haja quem tenha raiva a quem sabe e a quem a fez. Mas é assim mesmo a vida.

O meu propósito de hoje, quarenta anos após o 25 de Abril, é apenas o de prestar uma homenagem a esta Casa, uma das muitas que contribuíram serena e silenciosamente para a Revolução.

Ah, e já agora, aos que a habitavam, que aguentaram a defesa do bastião e a todos dos seus ilustres convidados, camaradas de uma geração que fez o que entendeu ser o seu dever, sem obedecer a ordens de ninguém, e deu o seu melhor, sempre desinteressadamente, com coragem e sem traições, coerentes até hoje, apesar das tramas políticas e das curvas do tempo:

Porto, 25 de Abril de 2014″

Nelson Bertini

 

O darwinismo social está mais vivo do que nunca. Ou és o melhor ou morres. Sendo que o conceito de “o melhor” é altamente subjectivo. Podes ser o melhor a engraxar o chefe e assim serás verdadeiramente “o melhor”. Se fores o melhor a trabalhar e incomodares o chefe, serás “o pior” – o verme a extinguir, o cancro que prejudica a evolução dos melhores.

Os melhores são os mais capazes. E, nestes novos tempos de darwinismo social, os melhores sobrevivem sempre. Saem sempre bem. Por cima. Em cima dos outros.

Os darwinistas sociais estão a liderar as organizações. Mas nunca ouviram sequer falar em Darwin. Ou terão ouvido vagamente. Porque nunca o estudaram, nem percebem o alcance. Porque nunca leram história, nem história social, nem sociologia, nem história económica, nem política social, nem políticas públicas, nem antropologia cultural, nem filosofia, nem psicologia social, nem sociologia urbana, nem demografia, nem ecologia, nem história das ideias políticas, nem direito, nem direito constitucional, nem direitos humanos, nem quaisquer outras ciências sociais. Porque isso não é ensinado nos MBA’s (os que os têm, os que os compraram).

Os darwinistas sociais que estão a liderar as organizações e a sociedade não têm a noção de que a luta pela sobrevivência individualista vai matar a própria sociedade. Não sabem porque não páram para pensar no que estão a fazer. Não sabem que por detrás da competição individualista estão tiques de autoritarismo e de deriva anti-social, que podem culminar numa luta extrema pela sobrevivência. No limite, há-de matá-los também.

Os darwinistas sociais não querem pensar nas consequências dos seus actos. Pensar fá-los perder tempo. Não querem perder tempo no que pode estar para vir. Porque acham que os fracos nunca vão ter força para os derrubar. Os fracos, mesmo muitos, não constituem ameaça. Porque dos fracos, pensam eles, não reza a história. Mas os fracos são cada vez mais. E eles não sabem disso, porque não páram para pensar.

Os darwinistas sociais fazem o seu trabalho. Limpinho. O das saídas limpas ou o das negociações sujas. O que interessa é fazer o que tem que ser feito. Com dor, reconhecem falsamente combalidos, mas é o que tem que ser feito. Não se incomodam com os que ficam pelo caminho. Mesmo sendo pessoas. Porque os que ficam pelo caminho são os fracos.

A sociedade não quer saber dos fracos. Os darwinistas sociais estão de consciência tranquila. Fizeram o que tinha de ser feito. Fazem o que tem de ser feito. Se a natureza não elimina os fracos por si só, nós os fortes fazemos o que tem de ser feito. Seus fracos, orientem-se. Façam-se à vida. Morram. Longe.

 

Imagem

 

 

 

Imagem

 

 

Sebastião Salgado - TrabalhoHoje, 1º Maio, em Istambul, a polícia de choque, com canhões de água e gás lacrimogéneo, reprimiu milhares de trabalhadores turcos que, ao apelo das suas centrais sindicais, quiseram realizar a sua manifestação do 1º Maio na emblemática Praça Taksim, que tem sido o palco principal de grandes movimentos populares contra a governação autoritária do governo islamista de Erdogan (ver notícia aqui).  Este governo tinha proibido os sindicatos de utilizarem a Praça Taksim no 1º Maio, mas estes consideraram essa decisão ilegítima e decidiram corajosamente enfrentar a proibição.

Vale a pena lembrar que já em 1976 centenas de milhar de trabalhadores turcos conseguiram celebrar o 1º Maio na Praça Taksim, mas que no ano seguinte, quando meio milhão aí voltou naquela data, foi alvo de uma violentíssima repressão, que causou 37 mortos. Ninguém foi julgado por tamanho crime e durante décadas o governo turco proibiu a celebração do 1º Maio nesta praça. Sempre que ali se realizaram manifestações, houve repressão. Como também sucedeu o ano passado, com muitos feridos.
Com a manifestação deste ano, as centrais sindicais DISK e KESK e as organizações dos médicos e engenheiros pretendiam também homenagear os mártires do 1º Maio de 1977 na Praça Taksim e afirmar direitos democráticos básicos.

A resposta brutal do AKP de Erdogan e a história recente da celebração do 1º Maio na Turquia lembra-nos mais uma vez que os direitos laborais, sociais e políticos conquistados podem ser retirados. Que é preciso uma forte unidade na acção dos trabalhadores e uma forte incorporação e reconhecimento social desses direitos numa cidadania activa e alargada. Que a recuperação dos direitos perdidos é um processo doloroso e muitas vezes prolongado. E que sem uma passagem de testemunho eficaz desses direitos para as gerações seguintes, a sua perenidade está sempre comprometida.

Essa lição, em circunstâncias diferentes, estamos também a aprendê-la por cá. Felizmente com o direito conquistado, exercido e mantido de na rua celebrarmos o 1º Maio.

 

 

 

vieira da silva, a poesia está na ruaSim, é verdade, temos uma permanente dívida de gratidão para com os militares que se levantaram do chão no 25 de Abril de 1974 e que tomaram a iniciativa de derrubar uma ditadura de 48 anos e de pôr fim à guerra colonial. O Largo do Carmo cheio hoje de manhã, ao apelo da Associação 25 de Abril, homenageando Salgueiro Maia e todos os militares de Abril, foi a merecida resposta popular aos que os quiseram remeter para uma inofensiva galeria no 40º aniversário da revolução.

Mais espantoso (ou sinal dos tempos) é todavia o esquecimento generalizado de que o levantamento militar só teve sucesso porque foi logo apoiado por um poderoso levantamento popular que no Largo do Carmo e de Norte a Sul de Portugal, recusou ficar em casa, soltou amarras, quebrou barreiras, tomou as ruas, correu com o poder fascista e converteu o que poderia ser um golpe militar de incerto futuro numa revolução libertadora.

Foi esta aliança entre o povo e o MFA, pelos vistos memória incómoda e causa de urticária para alguns, que esteve na origem da mais notável, original e criativa revolução europeia da segunda metade do século XX. Que foi muito mais do que a “transição” por alguns desejada.

Olha-se para a imprensa de hoje, e é dominante o esforço de ignorar (ou excluir) das análises e testemunhos os obreiros do activismo cidadão, sindical e social que impulsionou o levantamento popular e o processo transformador e participativo que se seguiu. De facto, a direita que no poder vem ajustando contas com  esse “dia inicial inteiro e limpo”, bem gostaria que ele se tivesse resumido a uma conveniente “transição”. E que há de mais conveniente para garantir o seu futuro do que reduzir o 25 de Abril a um golpe militar e apagar o movimento e o levantamento popular que pariu a maior manifestação de sempre em Portugal, o 1º Maio de 1974?

Tem por isso razão Jerónimo de Sousa quando hoje lembrou, na sua intervenção na sessão solene do parlamento que “sem iniciativa popular o movimento militar não venceria tal como o movimento popular sozinho não teria êxito”. 

A celebração popular nas ruas dos 40 anos da revolução fica então como o testemunho e a vontade de muitos de que não será apagada a memória verdadeira e completa desse “dia inicial inteiro e limpo”. Memória que é alicerce para conquistarmos um amanhã que seja também “inteiro e limpo”.